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A MORTE DE PÓLIO - CAPÍTULO 13


Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.[65]

A sentença de Pólio foi sumaríssima e irrevogável. No dia seguinte houve espetáculo no Coliseu. Cheio até os assentos do topo com a multidão de romanos sedentos e sangue humana, foi uma demonstração da mesma sucessão de horrores repugnantes que anteriormente foi descrita.
Novamente os gladiadores pelejaram e se mataram uns aos outros, individualmente e em massa. Uma variedade de formas de combate se conheciam na arena; e delas, as que maior sofrimento mortal infligiam achavam o maior favor dos assistentes.
Outra vez se apresentaram as cenas intermináveis de derramamento de sangue e de agonia. Os ferozes campeões do dia receberam as efêmeras felicitações dos volúveis espectadores. De novo o homem pelejou contra o homem, ou livrou os mais ferozes combates contra o tigre. Repetiu-se a cena do gladiador ferido que olhava afligido implorando misericórdia, não vendo outro sinal senão a morte, os polegares dos cruéis espectadores voltados para baixo.
Para saciar os apetites da multidão, agora se demandava uma maior e mais desalmada matança. Pois naquele dia não tinha atração olha o combate entre homens confrontados. Ah! Mas se sabia já que os cristãos tinham sido reservados para fechar o espetáculo, e a aparição deles se esperava e se impunha impacientemente.
Lúculo estava entre os guardas preto do assento do imperador. Mas seu semblante, de alegre que era, tinha se tornado pensativo.
Muito mais acima, nos assentos detrás dele, havia um rosto severo e palidíssimo que sobressaía entre todos, pelo olhar concentrado que dava à arena. Esse rosto era preso de uma expressão de ansiedade tão profunda que fazia notável contraste com todos os que se encontravam reunidos em tão vasta assembléia.
De pronto se ouviu o som do ronco chirriar das grades, e se viu pular o primeiro tigre na arena. Levantou a cabeça desafiante e se acoitava com sua própria cauda, espreitando ameaçador tudo em volta, reluzentes os ferozes olhos sobre a enorme massa de seres humanos que enchiam o imenso anfiteatro.
Não tardou em ouvir-se um murmúrio. Um rapaz foi lançado na arena.
De rosto pálido e contextura ligeira, desnutrido em extremo, era nada perante a mole da besta furiosa. E como nota de escárnio, haviam-no vestido como gladiador.
Porém, a despeito de sua tenra infância e sua debilidade, não havia nada em seu rosto nem em sua atitude que revelassem o menor assomo de medo. Mostrava possessão de si mesmo em seu olhar tranqüila. Avançou para a frente serenamente até o centro da arena, e ali, à vista de todos, elevou suas mãos juntas, levantou o olhar aos céus e falou com seu Deus.
Entretanto o tigre seguia ameaçador, deslocando-se como ao entrar. Tinha vista a criança mas não parecia ter havido efeito algum. Continuava levantando a visão de seus olhos sanguinários para as enormes muralhas e de vez em quando lançava selvagens rugidos.
O homem de rosto severo e triste olhava absorto como se toda sua alma acompanhasse esse olhar.
O tigre, por sua parte, não parecia mostrar o menor desejo de atacar o rapaz cristão que seguia orando.
A multidão ficou impaciente. Surgiram murmúrios e exclamações e gritos com a intenção de enfurecer a fera para que atacasse sua vítima.
Mas agora, de em meio do tumulto, surgiu o som de uma voz profunda e terrível:
"Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?" [66]
seguiu-se um silêncio profundo e aterrorizado. Cada um dos espectadores olhava ao que estava ao seu lado.
Mas o silêncio foi interrompido pela mesma voz, que repetiu com ênfase admonitória:
"Eis que vem com as nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Sim. Amém" [67].
"Justo és tu, que és e que eras, o Santo; porque julgaste estas coisas; porque derramaram o sangue de santos e de profetas" [68]
"Eles o merecem. Na verdade, ó Senhor Deus Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos" [69].
Porém agora os murmúrios e os gritos e clamores se propagaram por todas partes. E não demorou em desaparecer a causa da perturbação.
— Era um daqueles malditos cristãos. Era o fanático Cina. O tiveram recuido quatro dias sem dar-lhe alimentos. Tirem-no! Fora com ele! Joguem-no ao tigre!
Os clamores e as maldições surgiam de todas partes, tornando-se um único e enorme estrondo. O tigre pulava cada vez mais freneticamente. Os guardas ouviram as palavras da multidão e se apressaram a obedecer.
Não demoraram em abrir-se as grades, e a vítima foi lançada fora. Temeroso, macilento e em extremo pálido, avançou até o centro com passos trêmulos. Seus olhos mostravam um brilho extraordinário, suas faces ardiam enrubescidas, seu cabelo descuidado e sua longa barba estavam emaranhados numa única massa.
O tigre ao vê-lo se encaminhou pulando até ele. Porém, a uma curta distância, a fera embravecida se acaçapou. O menino, que tinha estado de joelhos, se pus em pé e olhou para ele. Por sua parte, Cina não via tigre nenhum. Seus olhares se dirigiam à turba, e agitando em alto seu braço macilento, clamou muito alto e com os mesmos tons admonitórios:
— Aí, aí, aí dos habitantes da terra!
Sua voz foi silenciada por torrentes de sangue. Não houve senão um pulo, uma queda, e perante os olhos humanos, nada mais.
E então o tigre se encaminhou para a criança. Sua sede de sangue havia-se excitado. Seus pelos eretos, flamejantes os olhos e acoitando-se com a cauda, mantinha-se imóvel frente a sua presa.
O rapaz viu chegar sua última porção na terra e novamente se ajoelhou. O populacho ficou mudo e estático, preso de profunda excitação e em ansiosa espera da nova cena sanguinária. Aquele homem que havia estado contemplando atentamente, agora se levantou e permaneceu em pé, ainda olhando a cena que se desenvolvia embaixo. De atrás dele saíram imediatos gritos que aumentavam em número e volume:
— Abaixo, abaixo, senta! Não impeças a vista!
Mas o homem, seja que não ouvia ou bem intencionalmente, não fazia caso. Finalmente o barulho cresceu tanto que chamou a atenção dos oficiais que estavam embaixo, quem voltaram para ver qual era a causa.
Lúculo naturalmente foi um deles. Tendo-se voltado para olhar, viu a cena toda. Deteve brevemente seu olhar e empalideceu.
— Marcelo! — exclamou. Por um momento quase caiu para trás, mas não tardou em recuperar-se e se dirigiu apressadamente à cena do distúrbio.
Mas agora havia estourado um murmúrio profundo entre o público. O tigre, que havia estado se passeando em volta do menino uma e outra vez, acoitando-se a si mesmo com crescente fúria, agora estava agachado, preparado para dar o golpe final.
O menino se levantou. Em seu rosto resplandecia uma expressão angelical. Seus olhos despediam um brilho de sublime entusiasmo. Ele já não via esta arena, nem as muralhas gigantescas que o rodeavam, nem também não as longas fileiras de assentos e as inúmeras caras hostis; já não via os implacáveis olhos dos cruéis espectadores, nem sequer a forma imensa do selvagem inimigo.
Seu espírito já parecia ingressar vitorioso pelas portas de ouro da Nova Jerusalém, e a glória inefável do pleno dia dos céus inundou-lhe o rosto em seus fulgores.
— Mãe, vou contigo! Senhor Jesus, recebe meu espírito!
Essas palavras soaram com toda nitidez e claridade aos ouvidos daquela multidão. Todos permaneceram em quietude sepulcral, e o tigre pulou. Os seguintes momentos não houve mais que uma massa que se removia coberta a meias por uma nuvem de pó.
A luta concluiu. O tigre voltou; a arena tinha sido tingida de vermelho, e sobre ela jaziam os despojos mutilados do leal e nobre Pólio.
Uma vez ao amparo do silêncio que se seguiu, deixou-se ouvir um clamor que tinha toda a intensidade de uma trombeta, e que espantou a cada um dos presentes:
— "Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo" [70].
Mil homens se levantaram a uma em arranques de ira e indignação. Mil mãos se levantaram indicando o atrevido intruso.
— Um cristão! Um cristão! Às chamas com ele! Lançai-o aos tigres! lançai-o à arena!
Com tais uivos contestou todo o populacho à voz admonitória.
Lúculo se fez presente no lugar no momento preciso para resgatar a Marcelo da turba enfurecida de romanos que se aprestavam a despedaçá-lo. diria-se que o tigre selvagem que estava na arena não estava tão enfurecido e tão sedento de sangue como o estavam eles. Lúculo se precipitou impetuosamente entre todos, qual guarda de feras selvagens.
Atemorizados pela sua autoridade, voltaram para trás, tendo sido cercados por soldados.
Lúculo não pôde fazer mais que entregar-lhes a Marcelo, e conduziu a companhia fora do anfiteatro.
Uma vez fora se encarregou ele mesmo do prisioneiro. Os soldados os seguiram a distância.
— Aí, Marcelo, Marcelo! Não é uma loucura que exponhas assim tua vida!
— Eu falei num impulso do momento. Pois aquele menino a quem eu tanto amava morria assim perante meus olhos! Não pude conter meu próprio ímpeto! Disso me comprazo e estou muito longe de me arrepender! Pois também estou pronto a oferecer minha vida por meu Rei e meu Deus!
— Eu não posso entrar em razões com você. Teus atos ultrapassam todo argumento e entendimento!
— Não foi minha intenção entregar-me; mas o que fiz, e como fui inspirado a fazê-lo, me satisfaze intimamente. Sim, vou gostoso e gozoso seguindo o caminho traçado pelo meu Redentor, de quem é minha vida, seja que viva ou a ofereça aqui.
— Aí, querido amigo! Não consideras tua vida?
— Eu amo a meu Salvador mais que a minha vida!
 — Olha, Marcelo, o conhecimento está aberto perante você. Foge velozmente. Corre, e salva tua vida.
Lúculo disse-lhe isto apressadamente em voz baixa, abrindo-lhe passo enquanto os homens estavam uns vinte passos atrás. Havia oportunidade de escapar.
Marcelo pressionou a mão do amigo.
— Não, Lúculo, longe de mim seja salvar minha vida com tua desonra. Reconheço e amo esse grande coração que todo o pospõe pelo amigo, mas não vou te criar dificuldades pela minha amizade.
Lúculo suspirou e seguiu em silenciosa reflexão.

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