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A PERSEGUIÇÃO - CAPÍTULO 9


Porque necessitais de paciência, para que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, possais alcançar a promessa. [41]

A perseguição agravou-se com maior fúria. Não haviam transcorrido senão umas poucas semanas desde que Marcelo vivia ali, quando um maior número tinha acudido em desesperada busca deste refúgio de retiro. Jamais no passado tinham-se congregado tantos nas catacumbas. Geralmente as autoridades se haviam contentado com os cristãos mais proeminentes e, em conseqüência, os fugitivos que recorriam às catacumbas compunham esta classe. Foi em verdade a perseguição mais severa que sobreveio esta vez, abrangendo a todos, e somente sob o governo de uns poucos imperadores havia-se mostrado tal encarniçamento indiscriminado. Esta vez não se fazia a menor distinção de classe ou posição. Pois tanto o mais humilde seguidor como o mais eminente dos mestres foram perseguidos a morte com a mais encarniçada fúria.
Até esta época a comunicação com a cidade era relativamente fácil para os refugiados, porque os cristãos que tinham ficado acima, embora pobres de médios, não descuidavam os que estavam nas profundezas do esconderijo, nem esqueciam suas necessidades. Facilmente, pois, podiam se adquirir provisões, e o auxílio não faltava. Porém chegou a hora em que precisamente aqueles em cujo auxílio confiavam os fugitivos, também foram vítimas da perseguição e obrigados a compartir seu destino com seus irmãos de grutas e precisar eles mesmos receber caridade em vez de dá-la.
Contudo, não afrontavam sua situação desesperando-se. Ainda nessa Roma havia muitos que os amavam e ajudavam, embora não fossem cristãos. Em todo grande movimento, sempre haverá uma considerável proporção de seres neutrais, os mesmos que, seja por interesse ou por indiferença, se mantêm à margem. Essas pessoas invariavelmente se unirão ao lado mais forte, e quando o perigo ameace, costumam evitá-lo fazendo qualquer concessão. Tal, pois, era a condição em que se encontravam numerosos romanos. Eles tinham amigos e parentes a quem amavam entre os cristãos e por quem sentiam a mais cordial simpatia. Sempre se mantinham dispostos a ajudá-los, mas naturalmente, tinham a devida consideração pela própria segurança para não chegar ao extremo de jogar sua sorte junto com a deles. Seguiam sendo cumpridos assistentes aos templos e à adoração dos deuses pagãos como antes, vindo assim a ser aderentes nominais das velhas superstições oficiais. Estes foram os que proveram para as necessidades da vida dos cristãos.
Porém agora, além disso, toda expedição que se tentasse fazer à cidade estava rodeada de maiores e iminentes perigos, e somente os muito ousados se atreviam a aventurar-se. Mas esse profundamente arraigado desdém pelo perigo e a morte era tal, e tantos eram os que por ele estavam inspirados, que jamais deixaram de oferecer-se espontaneamente os homens para desafiar a morte em tão perigosas empresas.
Eis ali as tarefas peculiares para as que Marcelo se oferecia entusiasta e gostoso de poder fazer algo por seus irmãos. A mesma valentia e perspicácia que o tinha elevado até as mesmas altas categorias militares, agora o faziam destacar-se com todo êxito nestas suas novas atividades.
Dezenas de fiéis eram capturados e sacrificados por dia. Os cristãos se encarregavam da igualmente arriscada tarefa de recuperar seus despojos mortais para dá-lhes sepultura de seu jeito. Nisto não havia tanto perigo, já que evitavam às autoridades o incômodo de queimá-los e enterrar os cadáveres.
Um dia chegaram notícias à comunidade residente sob a Via Ápia de que dois dos seus tinham sido capturados e entregados à morte. Marcelo, juntamente com outros, saíram com a missão de recuperar os corpos. Pólio, aquele rapaz com coração de adulto, foi com eles se por acaso fossem necessários seus serviços. Era o anoitecer quando chegaram à porta da cidade, e as trevas não demoraram em cobrir seus movimentos. Mas não tardou em aparecer a lua para iluminar o amplo cenário.
Escoaram-se abrindo-se passo pelas ruas tenebrosas, até chegar finalmente ao Coliseu, o lugar de martírio de tantos de seus companheiros. Aquela enorme massa se elevava orgulhosa diante deles, ampla, tenebrosa e severa, como o poder imperial que a tinha construído. Multidões de vigilantes, guardiões e gladiadores estavam dentro de suas portas, cujas passagens abobadadas estavam iluminadas pelo resplendor das tochas.
Os gladiadores conheciam o motivo de sua presença, e lhes ordenaram rudemente segui-los. Eles mesmos os conduziram até que estiveram na arena. Ali estavam jogados numerosos corpos, os últimos que tinham morrido naquele dia. Estavam cruelmente mutilados, alguns em condições tais que apensa se distinguia que eram seres humanos. Depois de uma longa busca, acharam os dois que procuravam. Esses corpos foram seguidamente colocados em grandes sacos, nos quais se dispunham a levá-los.
Marcelo se deteve para contemplar o cenário que o rodeava. Estava completamente rodeado de maciças muralhas que se elevavam por meio de numerosos terraços em declive, até chegar ao coroamento no círculo exterior. Sua estrutura preta parecia encerrá-lo com barreiras tais que ele já não podia franquear.
Ele pensava: "Quando chegará também o dia em que eu, da mesma maneira, ocupe meu posto aqui, oferecendo minha vida por meu Salvador? Serei fiel quando chegue esse momento? Oh, Senhor Jesus, sustenta-me naquela hora!"
Ainda a lua não tinha ascendido o suficiente para que penetrassem seus raios dentro da arena. Ali nesse interior tudo era escuro e repulsivo. A busca deveu realizar-se com tochas emprestadas pelos guardiões.
Naqueles momentos Marcelo ouviu uma voz profunda procedente de alguns dos arcos posteriores. Seus tons penetraram dentro do ar da noite com claridade surpreendente, e puderam ser ouvidos por cima da rude algaravia dos guardas:
"E ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite. E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram as suas vidas até à morte" [42].
— Quem é esse? — disse Marcelo.
— Não o atendas — disse seu companheiro— . É o irmão Cina. Suas penas e dores o deixaram maluco. Seu único filho foi queimado na pira a começos da perseguição, e desde então ele anda recorrendo a cidade anunciando calamidades por vir. Até agora não tinham se ocupado dele; porém finalmente o capturaram.
— E está prisioneiro aqui?
— Sim.
E de novo a voz de Cina se deixou ouvir, espantosa, ameaçadora e terrível:
"Até quando, oh verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?" [43].
— Esse é, então, o homem que eu ouvi no capitólio!
— Sim, deve ser ele, porque já recorreu toda a cidade, e ainda o palácio, clamando e apregoando isso mesmo.
— Vamos.
Tomaram seus sacos e se encaminharam às portas. Depois de uma breve pausa, foi-lhes permitido passar. E conforme saiam, ouviram a voz de Cina na distância:
"E clamou fortemente com grande voz, dizendo: Caiu, caiu a grande Babilônia, e se tornou morada de demônios, e covil de todo espírito imundo, e esconderijo de toda ave imunda e odiosa. Sai dela, povo meu!" [44]
Nenhum deles pronunciou palavra alguma ate que chegaram a suficiente distância do Coliseu.
Marcelo rompeu o silêncio.
— Senti um grande temor de que nos encerrassem e não nos deixassem sair mais de lá.
O outro lhe respondeu:
— Não sem razão sentiste aquele temor. O menor capricho repentino do guarda poderia ser a nossa sentença de morte inevitável. Mas para isso devemos estar sempre preparados. Pois em momentos como este, devemos estar dispostos a afrontar a morte a qualquer momento. Que diz o nosso Senhor? "Estai vós também prontos e apercebidos" [45]. Quando o tempo chegue, devemos estar dispostos a dizer: "Pronto estou para ser oferecido".
-Sim — disse Marcelo— , nosso Senhor já nos disse o que deveríamos ter: "no mundo tereis aflições..." [46].
— Ah, mas Ele também diz: "mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [47]. "Onde eu estou, vós também estareis" [48].
— Por meio dEle — disse Marcelo— , podemos sair mais que vencedores sobre a morte [49]. As aflições deste tempo presente não são dignas de comparar-se com a glória que nos será revelada [50].
Assim se consolavam eles com as promessas seguras da bendita Palavra de vida que em todos os tempos e em todas as circunstâncias é capaz de brindar semelhante consolo celestial. Finalmente chegaram a seu destino, sãos e salvos e portando suas cargas, com a íntima gratidão em seus corações para Aquele que os tinha preservado.
Não muitos dias depois, Marcelo voltou sair em busca de provisões. Esta vez ele foi sozinho. Foi à casa de um homem que era muito amigo deles e que tinha sido de grande ajuda. Estava por fora das muralhas, nas redondezas da Via Ápia.
Depois de ter obtido as provisões indispensáveis, começou a averiguar pelas notícias.
— Más são para vocês as notícias — disse o homem— . Um dos oficiais dos pontos se converteu ao cristianismo recentemente, e isso enfureceu o imperador. Este designou um outro oficial para o cargo que o outro tinha, e o comissionou para perseguir os cristãos. E é assim que a cada dia capturam alguns deles. Pois nestes dias não existe um único homem que seja considerado demasiado pobre para não capturá-lo.
— Ah, sabe você o nome do novo oficial dos pretorianos que está encarregado de perseguir os cristãos?
— Lúculo.
— Lúculo! — exclamou Marcelo— . Que estranho!
— Dizem que é um homem de muita habilidade e energia.
— Tenho ouvido falar dele. E em verdade estas são más notícias para os cristãos.
— A conversão ao cristianismo do outro oficial enfureceu o imperador até enlouquecê-lo. A tal extremo que se oferece um considerável resgate por ele. E se você, amigo, por ventura o vê ou estás em condições de falar com ele, procura por todos os médios comunicá-lo. dizem todos que ele está nas catacumbas com vocês.
— Ele deve estar ali, já que não existe outro lugar seguro.
— Verdadeiramente, estes são tempos terríveis. Deves tomar todas as precauções possíveis.
Marcelo respondeu, humilde, mas firmemente:
— Não podem matar-me mais de uma vez.
— Oh, vocês os cristãos desperdiçam a fortaleza mais excelente. Eu admiro com toda a minha alma seu valor, mas penso que vocês poderiam se conformar exteriormente ao decreto do imperador. Por que, pois, deviam precipitar-se assim tão loucamente à morte?
— Nosso Redentor morreu por nós. E de nossa parte, não podemos menos que estar prontos a morrer por Ele. E, já que Ele morreu pelo seu povo, nós também nos comprazemos voluntariamente em imitá-lo, oferecendo nossas vidas por nossos irmãos.
— Vocês são pessoas divinamente maravilhosas –exclamou aquele homem ao tempo que alçava as mãos.
Chegou o momento em que Marcelo deveu despedir-se, e então partiu levando sua carga. As notícias tinham sido tais que o haviam enchido e tinham comovido sua mente e todo seu ser.
"Então Lúculo ficou em meu posto", pensava ele, em seu caminho. "Como desejaria saber se ele se voltou contra mim! Pensará agora sobre mim como de seu amigo Marcelo, o simplesmente como de um cristão? Pode ser que o descubra dentro de pouco, seria verdadeiramente estranho que eu caísse em suas mãos; e, contudo, se eu fosse capturado, provavelmente chegaria a estar perto dele".
"Mas ele deve cumprir com seu dever de soldado, e por que deveria eu me queixar? Pois se ele foi nomeado para esse cargo, não tem alternativa senão obedecer. E ele, como soldado, não pode me tratar de outro modo senão como inimigo do estado. Ele bem pode ter pena de mim, e ainda me amar em seu coração como amigo, mas contudo não pode eximir-se de cumprir com seu dever".
"Já que se oferece um resgate pela minha cabeça, eles devem redobrar seus esforços para dar comigo. Acredito, pois, que meu tempo chegou. Devo estar preparado para enfrentar fielmente o que venha".
Sumido nestes pensamentos tinha recorrido a Via Ápia. Estava tão envolvido em suas meditações que não percebeu uma multidão de pessoas reunidas numa esquina, até que esteve em meio deles. E repentinamente se encontrou detido.
— Oh, amigo — exclamou uma voz rude— , não tenha tanta pressa. Quem é você, e para onde vai?
— Deixa o passo livre! — exclamou Marcelo em tom de comando, natural em quem já teve o hábito de mandar e ter homens sob suas ordens, indicando ao homem que se afastasse.
A multidão se surpreendeu pelo modo autoritário e o tom imperioso, mas o porta-voz deles se mostrou mais arrogante.
— Dize-nos quem é você, ou não passas!
Ao que Marcelo replicou:
— Homem, afasta-te a um lado. Não conheces que sou pretoriano?
Perante aquele homem tão pavoroso como venerável, a multidão se abriu rapidamente, e Marcelo passo pelo meio deles. Mas apenas tinha-se distanciado dali uns cinco passo, quando uma voz exclamou:
— Prendam-no! É Marcelo, o cristão!
A multidão também vociferou ao uníssono. Mas Marcelo não esperou maior advertência. Jogando fora a carga que levava, empreendeu vertiginosa fuga rumo o Tíber por uma rua lateral. A multidão íntegra o perseguiu. Era uma carreira de vida ou morte. Mas Marcelo tinha sido treinado em todo esporte atlético, e em segundos multiplicou a distância que o separava de seus perseguidores. Finalmente chegou no Tíber, e mergulhando nele nadou até o lado oposto.
Os perseguidores chegaram à beira do rio, mas não passaram dali.

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